sábado, 2 de abril de 2011

As xícaras de chá

Era a primeira visita depois de mais de trinta anos. Esperou-me na esquina conforme prometera. Olhos curiosos voltavam-se para nós. O corredor que dava para seu barraco era estreito. Água suja escorria pelos cantos. Mulheres sentadas na beira de suas portas faziam escova, pintavam as unhas da mão ou do pé. Pararam de falar quando passei. Sentia seus olhares em minha nuca. Ritmos de música se confundiam num alto volume. Funk, forró, sertanejo. Crianças brotavam por todos os lados assim como os cachorros, magros e com pelos opacos.

Chegamos em seu barraco. Mostrou-me o cômodo e cozinha de chão batido, com orgulho. Sentei-me à mesa da cozinha-sala, enquanto ela preparava o café. O cheiro do bolo assando impregnava o pequeno ambiente. De costas, contou-me um episódio em que eu, com dois anos de idade, caí doente no meio da noite. Morávamos num quintal com várias casas conjugadas. Ouviu o choro da minha mãe e lá foi bater na porta. Entrou e já foi me pegando no colo. “Miúda, corpinho mole, mole, os olhos revirando”, relembrou a Dona Maria. Fez a reza, deu-me um banho com ervas e me colocou para dormir. No dia seguinte, o milagre. Acordei brincando e comendo.

Estava bem idosa. Quando criança eu já a achava velha. Tinha medo de chegar perto pois a imaginava como uma bruxa. Era evangélica agora. As coisas da magia ficaram no passado. A simplicidade do barraco me tocava, pela limpeza e por acessórios tão singelos. Pediu-me ajuda para pegar a caixa que estava em cima do armário. Vi que era algo recém-comprado. Quando ela abriu, meus olhos ficaram vidrados no lindo jogo de chá. Finas xícaras brancas com rosas vermelhas. Lavou cada peça com cuidado enquanto rememorava. Depois que me curou, minha mãe passou a comprar um botão de rosa vermelha para eu colocar no altar dos santos. Ela me pegava no colo para eu alcançar o altar, depois me colocava no chão e eu saía correndo.

Aquele conjunto de xícaras significava o quanto eu era especial. Eu olhava o armário e via outras xícaras e copos simples. Dona Maria poderia ter usado qualquer peça daquelas! Um turbilhão de sentimentos tomou conta de mim. Vim embora tomada por um sentimento de reencontro com as coisas simples, de imensa felicidade e paz!

Poucas semanas depois o telefone da minha casa tocou. Era Marlene, filha da Dona Maria comunicando-me que sua mãe falecera. Ela não encontrou o meu telefone para informar do velório e só agora conseguira achar o número no meio das coisas da mãe. Atendia a um pedido especial de me presentear com aquele jogo de chá das rosas para meu enxoval. 'Coisa dos antigos', sorriu a filha ao telefone com o mesmo tom de ternura da mãe.

O vapor do chá sai da xícara e faz desenhos no ar. Sinto o carinho da Dona Maria e vejo seu sorriso e olhar cheio de amor. ‘Minha menina, essas rosas vermelhas são para você’.

2 comentários:

  1. Que lindo ! Quanta emoção ! Imagino lembranças da D.Maria pra você ? Eternas em seu coração ! Chuva de pétalas de rosas vermelhas à ela !!

    ResponderExcluir
  2. Que lindo ! Quanta emoção ! Imagino lembranças da D.Maria pra você ? Eternas em seu coração ! Chuva de pétalas de rosas vermelhas à ela !!

    ResponderExcluir